Nas últimas semanas, dois acontecimentos abalaram de maneira significativa alguns dos maiores expoentes da gastronomia no país.

João Victor Souza de Carvalho, 13 anos, morreu em um episódio envolvendo funcionários do Habib’s, em frente à unidade da lanchonete, na Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo. As circunstâncias e causa da morte ainda são nebulosas mas é sabido que houve agressão física por parte dos funcionários a criança, que frequentemente pedia comida e dinheiro na frente do estabelecimento. O Habib’s é, segundo seu site institucional, “a maior rede de fast-food brasileira e maior rede de fast-food árabe do mundo” com um “sistema inovador de franquias, os preços acessíveis e o conceito de alimentos padronizados com qualidade”.

Já os maiores produtores de proteína do mundo, JBS (Friboi, Seara e Swift) e BRF (Sadia e Perdigão), que juntas empregam mais de 300 mil pessoas e exportam para mais de 150 países, estão sendo investigados na operação da Polícia Federal “Carne Fraca”, que revelou irregularidades como pagamentos de propina para a liberação de produtos sem fiscalização em cerca de 40 frigoríficos. Três unidades foram fechadas, outras 21 estão sob suspeita e diversos países embargaram, suspenderam ou simplesmente extinguiram suas importações de carne embutidos, resultando em perdas financeiras catastróficas.

Não vamos entrar no mérito dos fatos. As investigações ainda estão em andamento, novas evidências são descobertas e refutadas a cada momento e os casos tomam proporções novelescas com o desenrolar dos dias, de modo que qualquer análise aprofundada ou conclusiva seria, neste momento, precipitada. Há, porém, que se discutir o posicionamento destas empresas face à crise que enfrentam. Isso porque, independentemente da comprovação de culpa e sua extensão, a sentença midiática já foi dada: a cobertura intensiva, a repercussão nas redes sociais, os “vomitaços”, boicotes e memes decretam seu veredicto condenatório a cada compartilhamento.

Em artigo da década de 60, o precursor das Relações Públicas no Brasil, Cândido Teobaldo, já explicava esse fenômeno: “O ideal do homem inteligente e bem informado, que recorre à crítica e à reflexão para chegar a conclusões racionais a respeito das controvérsias levantadas, não constitui uma realidade em todos os sentidos. A hereditariedade, o meio cultural, a personalidade, a impossibilidade de obter todas as informações, os estereótipos e tantos outros determinantes impedem a formação de uma opinião pública racional e pura e (...) pode, às vezes, provocar o aparecimento de um comportamento, por parte do público, muito semelhante ao de uma multidão ou massa, não surgindo, na realidade, a opinião pública, mas somente um sentimento coletivo”

 A discussão pública exige racionalidade. Argumentos e contra-argumentos devem ser justificados e criticados e, assim sendo, é imperativo que as empresas se posicionem de maneira ágil, objetiva e transparente, expondo suas atividades, razões e perspectiva a todos os interessados e/ou afetados, a fim de esclarecer dúvidas e permitir uma deliberação ampla, coletiva e livre acerca dos acontecimentos.

A JBS prontamente emitiu um comunicado oficial em dez pontos, reafirmando seu compromisso histórico com a qualidade na produção, suas certificações e zelo nas relações comerciais e sua colaboração com as investigações em andamento. Além disso, realiza um trabalho hercúleo em redes sociais, tentando responder individualmente a todas manifestações e críticas recebidas, mantendo coesão na linha de defesa institucional. A BRF, por sua vez, além do comunicado e trabalho individualizado em redes sociais, criou um portal de transparência, onde está disponibilizando atualizações e informações adicionais a respeito das investigações.

Essas práticas, aliadas a uma massiva campanha televisiva e intensivo trabalho de lobby junto a órgãos internacionais, já conseguiu dirimir consideravelmente os impactos na exportação (praticamente todos os embargos foram suspensos) e na credibilidade de parte do público (queda imediata na venda de carne foi bastante reduzida).

A abordagem do Habib’s não seguiu esse caminho. A rede, que funciona como franqueadora, manteve 19 dias de silêncio desde o ocorrido até seu primeiro e único comunicado (suas redes sociais continuam intocadas). Neste, a empresa explica que “mesmo que nos primeiros momentos o silêncio nos prejudicasse, atendemos a esse clamor da forma mais responsável possível” para então isentar a si e ao franqueado de qualquer responsabilidade do ocorrido pois a criança “caiu vítima do mais trágico conjunto de circunstâncias (...) falta de assistência social, falta de educação, falta de alimentação, falta de estrutura familiar e a devastadora exposição às drogas”.

Em quatro páginas, esmiúça o episódio, usa de estatísticas sociais convenientes, divulga procedimentos policiais (B.O.s) anteriores da vítima (em severa infração administrativa ao Estatuto da Criança e do Adolescente), desnuda a privacidade da vítima com laudos e demais tecnicidades médico-legais e atribui seu apedrejamento público à prática da pós-verdade. Ao final, lista alguns projetos e patrocínios a ações de assistência a crianças em situação de risco que promove, como forma de promover um futuro melhor.

Em outras palavras, enquanto FBS e BRF agiram rápida e continuamente, fornecendo informações de interesse, colaborando com as investigações e pautando toda sua defesa no reiterado compromisso de qualidade em toda a cadeia produtiva que os levou a liderança mundial no fornecimento de proteínas animais (foco no próprio negócio e garantia de qualidade no mesmo), o Habib’s optou pelo silêncio desconfortável e pela culpabilização da sociedade pela fatalidade (foco no cenário disfuncional e vitimismo).

Novamente, não estamos aqui para discutir o mérito dos fatos mas sim o posicionamento para formação da opinião pública que, ainda segundo Teobaldo, “não é unânime, nem, tampouco, a opinião da maioria (...) é reflexo do grau, da eficiência, da organização e da verbalização dos grupos ou indivíduos que participam do debate”. Tendo esses critérios em vista, podemos dizer que o posicionamento do Habib's ainda gera aquela queimação de azia...

Esse e outros casos referente a mídia e gastronomia serão explorados no curso Gatronomídia.

 

Texto original em: https://www.linkedin.com/pulse/h%C3%A1-algo-de-indigesto-reino-das-esfirras-leandro-de-almeida-henriques